Estrategistas do PT fecham o cerco e preparam o terreno para estabelecer as bases práticas da “transição para o socialismo” no espaço nacional. Eles querem que o segundo mandato de Lula, se possível seis meses antes das eleições presidenciais, já encontre a máquina regulada para o exercício do poder institucionalizado dentro dos moldes de uma república popular. Assim, nos últimos meses, por meio de palestras e debates de propostas “transformadoras” efetivadas em reuniões fechadas, ideólogos do petismo situados no governo laboram com afinco para a urgente criação de conselhos, associações e organismos empenhados no “controle do imaginário da nação”. Esperam, com eles, objetivar a sustentação de sólida plataforma para o encaminhamento das reformas “moral” (cultural) e “intelectual” (ideológica) da sociedade, a partir das quais seria desfechada a transição (“superação”) do Estado burguês para o Estado-classe.
Propostas de projetos como as que resultariam na criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) e do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo), que estão sendo encaminhadas ao Congresso Nacional depois de devidamente analisados pela Casa Civil, evidenciam o desejo do governo Lula de ensejar a orientação, a disciplina e a fiscalização dos instrumentos de controle psicossocial, já que detém em grande parte o domínio dos instrumentos políticos e econômicos que conduzem o país. No fundo, são propostas que possibilitam a consolidação do partido-Estado, definido pelo teórico comunista Antonio Gramsci como o “Príncipe Moderno” - tornando-se este, por sua vez, responsável pela afirmação de uma nova ordem social totalizadora.
Com efeito, o próprio Gramsci assim explica o partido-Estado em suas “Notas sobre Maquiavel, a política e o Estado moderno” (“Note sul Machiavelli, sula política e sullo stato moderno” – Istituto Gramsci, 1961): “O moderno Príncipe (partido hegemônico), desenvolve-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que o seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar o poder ou para opor-se a ele. O príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume”.
No encadeamento da lógica do Príncipe Moderno (como realça, por linhas paralelas, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, no paper “Subdesenvolvimento e Cultura”), em que se toma a parte pelo todo, o partido-Estado, operacionalizado por conselhos e organismos participativos, apresenta-se como o detentor do poder, da lei e da verdade (conhecimento) para conduzir a sociedade, denegando o adverso (o Outro) como representante demoníaco da democracia burguesa ou do inimigo externo (imperialismo) – o velho bode expiatório capaz de inspirar a unidade e o ódio das massas.
De fato, no arrazoado do partido hegemônico, em que se explora sem peias o mito de uma possível identidade sem divisões, voltada para a “construção da grandeza nacional”, o povo distingue-se identificado com o proletariado (a classe trabalhadora), o proletariado com o partido de classe, o partido de classe com a executiva (direção) do partido, e a executiva do partido, por sua vez, com o líder carismático – pois no topo da pirâmide projetada pelo Príncipe Moderno prevalecerá sempre a figura e a vontade do líder, seja ele Stalin, Mussolini, Hitler, Fidel ou mesmo Lula.
Pelo menos na teoria, o Príncipe moderno imaginado por Gramsci viria para se contrapor ao Príncipe de Machiavel, ideário do Estado monárquico que preservava os privilégios das classes superiores sobre a burguesia emergente, o proletariado e as massas do campo. No entanto, moderno ou antigo, na ordem prática das coisas tanto os apaniguados do Príncipe de Maquiavel quanto os de Gramsci, jamais deixaram de abocanhar o produto do suor das massas trabalhadoras, como bem evidenciam a boa vida levada pelas Nomenklaturas da extinta URSS e de Cuba, o parasitismo remunerado dos “senõritos” no México do partido único (o PRI – Partido Revolucionário Institucional”) e, no plano local, a existência da privilegiada “casta de serviço” alimentada pela ditadura “revolucionária” do General Geisel e ampliada de forma perversa pela criação e fortalecimento de centenas de estatais, entre elas a Embrafilme, a exaurir o esforço da cadeia produtiva nacional.
É no mínimo urgente que a sociedade e o Congresso Nacional se ponham em alerta quanto às pretensões do governo de criar, pela estratégia de aprovação pelo voto, as bases de um Estado totalitário. E é bom não acreditar na oposição das corporações e das elites que vivem das benesses do Estado. Elas, a despeito de tudo, terminam por conviver com os arreganhos do totalitarismo desde que não se toque em seus privilégios. Basta olhar o mundo do Príncipe – antigo ou moderno.
Fonte: O Estado de São Paulo, em 13/08/2004, por Ipojuca Pontes