O referendo é mais um sinal de que o atual governo não tem a menor compreensão do que é democracia. Quem acha o contrário mostra que ele não está sozinho na sua ignorância.
Diante da ofensiva da campanha do NÃO nos meios de comunicação, claramente
caracterizando a proibição do comércio de armas e munição como cerceamento do
direito fundamental à auto-defesa, e portanto, um atentado contra a democracia,
defensores do SIM começaram a circular argumentos que tentam refutar essa
acusação. Argumentam os defensores do SIM que o referendo é uma forma
democrática de definir a questão, pois estaria sendo chamada a decidir a
autoridade máxima da democracia: a soberania popular. O povo, de forma soberana,
estaria decidindo sobre um tema controverso, e qualquer decisão que for tomada
será necessáriamente democrática. Alguns, mais empolgados, tentam caracterizar a
iniciativa do governo de convocar um referendo sobre o tema como um sinal de
quão democrático ele é.
O argumento da soberania popular legitimando uma eventual decisão pela
proibição do comércio de armas é apenas mais uma prova de que muita gente não
têm a menor idéia do que é democracia. E essa turma toda vota SIM.
Para desmontar essa mentira, é necessário fazer a pergunta: o que é
democracia? É a ditadura da maioria, impondo sua vontade à minoria sem nenhum
tipo de controle ou limite? Ou é algo diferente disso?
Quem diz que o referendo é democrático, porque é uma consulta ao povo, está
defendendo implicitamente que a democracia nada mais é do que a ditadura da
maioria. Por essa lógica, qualquer decisão que for tomada “pelo povo” é
democrática. Pior ainda, aquilo que a maioria considerar, em algum momento, como
certo, passa automaticamente a sê-lo. E porquê? Por que a maioria assim o quis!
Nada é, por definição, errado ou imoral; se a maioria quiser algo, esse algo
passa a ser correto, virtuoso, moral. Se a maioria quiser proibir todas as
pessoas de vestir amarelo, ela pode; se ela decidir que ninguém pode usar armas,
ela pode; e se ela decidir que uma minoria qualquer deve ser destruída,
escravizada, expulsa do país ou privada dos direitos mais fundamentais, ela
também pode.
Essa visão de democracia nada mais é do que um retorno à lei da selva: o
grupo mais forte (a maioria) decide o que quer e impõe sua vontade aos mais
fracos (a minoria), que têm então o “direito” de calar a boca e engolir o que
foi decidido, pois a decisão é “democrática”. Também leva à uma inevitável
conclusão: em última instância, os direitos que os cidadãos têm são definidos
apenas pelo que consta na lei, e podem ser ampliados, reduzidos ou revogados
inteiramente pela “vontade popular” – expressa, naturalmente, pelo Estado, que é
o executor dessa vontade. A lógica monstruosa é de que, tudo o mais considerado,
é o Estado quem diz o que são ou não nossos direitos. Não temos direitos a menos
que o Estado diga que temos. E da mesma forma que ele pode nos dar direitos,
também pode tirá-los.
Essa lógica é inaceitável, pois coloca cada um de nós como escravo do poder
estatal – agora revestido da pseudo-legitimidade de representar a vontade
da maioria. E a vontade do indivíduo, do cidadão pagador de impostos, como fica?
Só vale se por ventura coincidir com a da maioria, sendo ignorada se for
minoritária? Onde fica a dignidade humana inalienável? Sujeita aos caprichos da
multidão e dos burocratas?
Reinaldo Azevedo, em artigo recente, resumiu a questão de forma brilhante.
<i>“O pensamento de tradição e de origem liberais reconhece que, por mais
que as políticas públicas e a militância política dêem, como diria Lula,
‘concretude’ às noções de ‘liberdade’ e ‘igualdade’, ambas não podem existir se
não se realizarem no sujeito e em seu benefício. O bom sistema é aquele que
estabelece os limites para que indivíduo não massacre indivíduo, mas é ele o
elemento a ser protegido pelas leis. O Estado é um regulador das vontades e
assegura o pacto estabelecido, mas não é ele mesmo dotado de uma
vontade.”</i> Ou seja, a vontade da maioria têm limites, dentro de uma
democracia: a sua imposição não pode representar o massacre dos direitos das
pessoas. Entre a vontade da maioria e a defesa dos direitos das minorias
(inclusive a menor minoria que existe: a de uma pessoa só), a democracia
verdadeira será sempre aquela que proteger os direitos daqueles que não podem
ganhar no berro ou na quantidade de mãos levantadas. É por isso que, derrotada
nas urnas em uma eleição, a minoria não é varrida do mapa ou excluída do
processo político: quem tem maioria fica com o mandato de governar, mas a
minoria recebe o mandato de fazer oposição e fiscalizar os representantes da
maioria. As leis de uma democracia não servem para atender a vontade da maioria:
elas existem para garantir que o indivíduo não seja pisoteado por outros
indivíduos ou pela multidão.
Como fica então o referendo, se entendemos democracia como a defesa dos
direitos das minorias e não como mera ditadura da maioria? Muito mal. O objetivo
do referendo é decidir se a maioria pode cercear o direito da minoria à
auto-defesa. Mas se o objetivo da democracia é defender os direitos dos
indivíduos, como podemos considerar democrático tentar cassá-los com base na
vontade da maioria? Qualquer um pode abrir mão de usar um direito (inclusive o
da auto-defesa), mas ninguém pode proibir os outros de usá-lo.
Pode-se argumentar, claro, que possuir uma arma não é um direito fundamental.
Não, não é mesmo. Mas no mundo em que vivemos, onde os criminosos estão armados
até os dentes, infelizmente a posse de uma arma de fogo pode ser sim a única
forma de exercer o direito de legítima defesa. Se a arma é uma ferramenta
necessária para exercer o direito da auto-defesa, proibir a sua aquisição
equivale a cassar esse direito. Nenhuma lei pode exigir do indivíduo que fique
passivo diante da violência contra si mesmo ou seus entes queridos; nenhum
burocrata ou multidão pode decidir por ele se a melhor alternativa em um dado
momento é curvar-se diante da força do crime ou reagir. Essa decisão, com todos
os seus riscos, está na esfera individual, não coletiva. Quem paga o preço dela
é o indivíduo, não a multidão anônima; logo, só ele pode decidir, para o bem e
para o mal.
Então, no referendo que se aproxima, qualquer democrata (mesmo aqueles que,
como eu, é contra as armas) só tem uma opção: votar NÃO. Votar NÃO significa
recusar essa intromissão inaceitável nos direitos individuais; repelir a visão
de que a democracia é a ditadura da maioria; defender que maioria alguma pode
cassar os direitos das minorias, não importa quão pequenas elas sejam. É,
principalmente, declarar em alto e bom tom que o Estado não é babá de ninguém, e
que os cidadãos são capazes de tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se
por elas.
O referendo é mais um sinal de que o atual governo não tem a menor
compreensão do que é democracia. Quem acha o contrário mostra que ele não está
sozinho na sua ignorância.
Diante da ofensiva da campanha do NÃO nos meios de comunicação, claramente
caracterizando a proibição do comércio de armas e munição como cerceamento do
direito fundamental à auto-defesa, e portanto, um atentado contra a democracia,
defensores do SIM começaram a circular argumentos que tentam refutar essa
acusação. Argumentam os defensores do SIM que o referendo é uma forma
democrática de definir a questão, pois estaria sendo chamada a decidir a
autoridade máxima da democracia: a soberania popular. O povo, de forma soberana,
estaria decidindo sobre um tema controverso, e qualquer decisão que for tomada
será necessáriamente democrática. Alguns, mais empolgados, tentam caracterizar a
iniciativa do governo de convocar um referendo sobre o tema como um sinal de
quão democrático ele é.
O argumento da soberania popular legitimando uma eventual decisão pela
proibição do comércio de armas é apenas mais uma prova de que muita gente não
têm a menor idéia do que é democracia. E essa turma toda vota SIM.
Para desmontar essa mentira, é necessário fazer a pergunta: o que é
democracia? É a ditadura da maioria, impondo sua vontade à minoria sem nenhum
tipo de controle ou limite? Ou é algo diferente disso?
Quem diz que o referendo é democrático, porque é uma consulta ao povo, está
defendendo implicitamente que a democracia nada mais é do que a ditadura da
maioria. Por essa lógica, qualquer decisão que for tomada “pelo povo” é
democrática. Pior ainda, aquilo que a maioria considerar, em algum momento, como
certo, passa automaticamente a sê-lo. E porquê? Por que a maioria assim o quis!
Nada é, por definição, errado ou imoral; se a maioria quiser algo, esse algo
passa a ser correto, virtuoso, moral. Se a maioria quiser proibir todas as
pessoas de vestir amarelo, ela pode; se ela decidir que ninguém pode usar armas,
ela pode; e se ela decidir que uma minoria qualquer deve ser destruída,
escravizada, expulsa do país ou privada dos direitos mais fundamentais, ela
também pode.
Essa visão de democracia nada mais é do que um retorno à lei da selva: o
grupo mais forte (a maioria) decide o que quer e impõe sua vontade aos mais
fracos (a minoria), que têm então o “direito” de calar a boca e engolir o que
foi decidido, pois a decisão é “democrática”. Também leva à uma inevitável
conclusão: em última instância, os direitos que os cidadãos têm são definidos
apenas pelo que consta na lei, e podem ser ampliados, reduzidos ou revogados
inteiramente pela “vontade popular” – expressa, naturalmente, pelo Estado, que é
o executor dessa vontade. A lógica monstruosa é de que, tudo o mais considerado,
é o Estado quem diz o que são ou não nossos direitos. Não temos direitos a menos
que o Estado diga que temos. E da mesma forma que ele pode nos dar direitos,
também pode tirá-los.
Essa lógica é inaceitável, pois coloca cada um de nós como escravo do poder
estatal – agora revestido da pseudo-legitimidade de representar a vontade
da maioria. E a vontade do indivíduo, do cidadão pagador de impostos, como fica?
Só vale se por ventura coincidir com a da maioria, sendo ignorada se for
minoritária? Onde fica a dignidade humana inalienável? Sujeita aos caprichos da
multidão e dos burocratas?
Reinaldo Azevedo, em artigo recente, resumiu a questão de forma brilhante.
<i>“O pensamento de tradição e de origem liberais reconhece que, por mais
que as políticas públicas e a militância política dêem, como diria Lula,
‘concretude’ às noções de ‘liberdade’ e ‘igualdade’, ambas não podem existir se
não se realizarem no sujeito e em seu benefício. O bom sistema é aquele que
estabelece os limites para que indivíduo não massacre indivíduo, mas é ele o
elemento a ser protegido pelas leis. O Estado é um regulador das vontades e
assegura o pacto estabelecido, mas não é ele mesmo dotado de uma
vontade.”</i> Ou seja, a vontade da maioria têm limites, dentro de uma
democracia: a sua imposição não pode representar o massacre dos direitos das
pessoas. Entre a vontade da maioria e a defesa dos direitos das minorias
(inclusive a menor minoria que existe: a de uma pessoa só), a democracia
verdadeira será sempre aquela que proteger os direitos daqueles que não podem
ganhar no berro ou na quantidade de mãos levantadas. É por isso que, derrotada
nas urnas em uma eleição, a minoria não é varrida do mapa ou excluída do
processo político: quem tem maioria fica com o mandato de governar, mas a
minoria recebe o mandato de fazer oposição e fiscalizar os representantes da
maioria. As leis de uma democracia não servem para atender a vontade da maioria:
elas existem para garantir que o indivíduo não seja pisoteado por outros
indivíduos ou pela multidão.
Como fica então o referendo, se entendemos democracia como a defesa dos
direitos das minorias e não como mera ditadura da maioria? Muito mal. O objetivo
do referendo é decidir se a maioria pode cercear o direito da minoria à
auto-defesa. Mas se o objetivo da democracia é defender os direitos dos
indivíduos, como podemos considerar democrático tentar cassá-los com base na
vontade da maioria? Qualquer um pode abrir mão de usar um direito (inclusive o
da auto-defesa), mas ninguém pode proibir os outros de usá-lo.
Pode-se argumentar, claro, que possuir uma arma não é um direito fundamental.
Não, não é mesmo. Mas no mundo em que vivemos, onde os criminosos estão armados
até os dentes, infelizmente a posse de uma arma de fogo pode ser sim a única
forma de exercer o direito de legítima defesa. Se a arma é uma ferramenta
necessária para exercer o direito da auto-defesa, proibir a sua aquisição
equivale a cassar esse direito. Nenhuma lei pode exigir do indivíduo que fique
passivo diante da violência contra si mesmo ou seus entes queridos; nenhum
burocrata ou multidão pode decidir por ele se a melhor alternativa em um dado
momento é curvar-se diante da força do crime ou reagir. Essa decisão, com todos
os seus riscos, está na esfera individual, não coletiva. Quem paga o preço dela
é o indivíduo, não a multidão anônima; logo, só ele pode decidir, para o bem e
para o mal.
Então, no referendo que se aproxima, qualquer democrata (mesmo aqueles que,
como eu, é contra as armas) só tem uma opção: votar NÃO. Votar NÃO significa
recusar essa intromissão inaceitável nos direitos individuais; repelir a visão
de que a democracia é a ditadura da maioria; defender que maioria alguma pode
cassar os direitos das minorias, não importa quão pequenas elas sejam. É,
principalmente, declarar em alto e bom tom que o Estado não é babá de ninguém, e
que os cidadãos são capazes de tomar suas próprias decisões e responsabilizar-se
por elas.
O referendo é mais um sinal de que o atual governo não tem a menor
compreensão do que é democracia. Quem acha o contrário mostra que ele não está
sozinho na sua ignorância.